Da natureza, vêm alimento, moradia e espiritualidade. Também inspiração para poemas, contos, crônicas e reflexões filosóficas. Escritores indígenas como Daniel Munduruku e Márcia Wayna Kambeba constroem há décadas uma literatura engajada com a floresta e os valores dos povos tradicionais.
Por isso, além de autoridades na arte da escrita, são especialistas em avaliar o quanto os diferentes tipos de poluição têm impactado ecossistemas e populações que vivem em sintonia direta com a natureza.
E, quando se trata de perspectivas para o futuro, o tom é de preocupação e certo pessimismo. Eles entendem que uma política climática efetiva, capaz de conter aquecimento global e desmatamento, dependeria necessariamente de uma transformação radical nas estruturas de consumo e de produção no planeta.
Conferência aprova 80 propostas de políticas sobre economia solidária
Brasileiros não resgatam de R$ 10 mil a R$ 50 mil de parentes mortos
A reportagem da Agência Brasil entrevistou Munduruku e Kambeba na sede do Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) no Rio de Janeiro. A conversa se deu poucas horas antes da participação de ambos no Clube de Leitura, onde falaram sobre os livros Das Coisas que Aprendi: Ensaios sobre o Bem-Viver (2014) e Saberes da Floresta (2020).
Em comum, as obras falam de aprendizados e saberes adquiridos a partir da vivência com a natureza. De uma visão de mundo que valoriza a integração e o bem coletivo. Elementos que o escritor Daniel Munduruku entende não fazerem parte do mundo ocidental. Esta ausência é parte fundamental da crise climática. E da crise existencial.
“Partimos de duas perspectivas completamente opostas. Não tem como o mundo capitalista ocidental se converter em uma coletividade. São muitos séculos construindo uma sociedade do indivíduo. E nós valorizamos o coletivo, que não fala apenas dos humanos. Nenhum ser da natureza vive sozinho”, diz Munduruku.
“A visão ocidental é baseada no tempo linear e em um futuro sobre o qual os indivíduos ficam o todo tempo especulando. Eles apostam em um tempo que um dia chegará, onde pensam morar a felicidade. Tudo é ilusão. E aí, se cria um paraíso para onde um dia eles chegarão. Então, somos todos perdoados por nossos pecados. Amém. Correm o tempo todo atrás da riqueza. E, para o indígena, a riqueza está aqui. E a gente só pode viver esse aqui agora”, ele complementa.
Questões ambientais têm recebido uma atenção crescente com a proximidade da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30), marcada para novembro, em Belém. Márcia Kambeba entende que um evento bem-sucedido dependeria de acordos mais radicais.
“O que de fato a gente quer com a COP quando pensamos a questão do clima? Ela depende da questão ambiental, da preservação e conservação da natureza. Da retomada de consciência em relação ao lixo e aos impactos ambientais que produzimos. As pessoas não querem falar sobre isso. Não há consciência real de que o modo de consumo gera tantos impactos”, analisa Kambeba.
Munduruku compartilha do pessimismo sobre os ganhos que a COP30 pode trazer para o meio ambiente e os povos que vivem diretamente em harmonia com ele.
“Chegamos em um impasse hoje que, se não voltarmos a ser natureza, a tendência é não sobrevivermos. E a COP30 não é uma reunião para salvar a natureza. Ela é uma reunião para salvar a economia do mundo. Ou seja, é uma contradição absolutamente impossível de se resolver, porque o sistema hegemônico econômico não vai parar”, diz o escritor.
“Não adianta chamar o [escritor indígena] Davi Kopenawa para fazer um discurso. Porque a fala dele não impacta em nada na questão dos bancos e do dinheiro. O que o indígena defende é a manutenção da vida no planeta. E o que os banqueiros defendem é a manutenção da riqueza deles”, acrescenta.
Literatura e resistência
Mesmo que as projeções não sejam tão otimistas, os escritores indígenas mantêm a esperança de que algumas mudanças comecem por meio da literatura. Na capacidade que ela tem de sensibilizar, inspirar e transformar.
“A literatura é uma forma de registrarmos memórias, narrativas, oralidades, verdades que os nossos antigos nos ensinaram. A memória pulsa no nosso corpo todo. A voz do rio, a voz da floresta, a voz dos pássaros, das encantarias protegem a relação estabelecida entre homem e natureza”, diz Kambeba.
“E que a gente vai transformar isso no bem-viver. Queremos trazer essa escrita e esses ensinamentos compartilhados tanto para os que vivem na aldeia, quanto para os que vivem na cidade”, completa.
Munduruku defende que os indígenas têm um repertório longo de resistência e que isso se reflete nos livros, de maneira a impactar cada vez mais pessoas.
“Foi uma conquista do próprio movimento indígena ter mais espaço para escritores indígenas desde o final dos anos 80. Nossa voz ganha mais espaço e autonomia. E reinventamos nossa inserção na sociedade. Se hoje temos mais de 100 autores indígenas produzindo é porque cada um está fazendo o seu caminho, mas agarrando na mão um do outro. E estamos educando as novas gerações a pensar de uma maneira mais inclusiva, mais humana”, diz o escritor.